30.11.06

José *

José era um daqueles colegas terrivelmente malandros. Malandro é, aliás, um termo brando para as tropelias que fazia metendo a turma toda em problemas. Todos nós com 10 anos, a estudarmos no quinto ano, nas antigas instalações do «ciclo» - onde hoje funciona o BCP – tínhamos o sangue a fervilhar de aventuras. As «aventuras dos cinco» serviam de inspiração para aquilo que já não conseguíamos mais inventar. José, sempre reguila apontava o caminho e todos seguíamos, fosse qual fosse a traquinice. Fosse também qual fosse o resultado o castigo era certo. E aí, José era sempre o primeiro a alinhar e todos nós atrás. Mesmo que não fosse culpa dele, ele assumia com o resto do grupo, sempre solidário, sempre corajoso. Daí que tenha ficado sempre na minha memória. Passaram alguns anos desde então.
Estava eu a sair de um supermercado, quando sou abordado por um vulto, quase uma sombra de um ser humano, cadavérico e triste. Uns olhos enormes saíam quase das orbitas de tão magro que estava. Dirigiu-se a mim e disse: «meu senhor não me dá uma moedinha?», gelei. Era o José, nem me reconhecia, nem se lembrava de mim. Tratou-me sempre por «senhor», apenas a moeda interessava na angústia de obter o dinheiro para a dose seguinte. Lembrei-me de imediato daquele miúdo traquina que encarava os castigos de peito aberto, corajoso. O que foi feita dessa coragem? Não sei quanto tempo estive sem conseguir dizer algo, apenas com aquelas lembranças, até que lhe perguntei se não se lembrava de mim, disse que não, apenas queria a moeda. Não lhe dei, recusei-me a contribuir para a degradação, para a morte. Sei que outro deu e a dose seguinte estava garantida, nunca mais se lembrou de mim e eu nunca mais esqueci aquela imagem. Passaram mais dois anos, deixei de o ver. Hoje, ao estacionar o carro vi-o. Está a trabalhar como jardineiro, limpava as folhas caídas do Outono, do jardim. Deixei-me ficar por uns momentos dentro do carro a observar. Esta muito melhor, fruto, talvez de alguma desintoxicação. Mais gordo, o cabelo cortado como sempre teve, devolveu-lhe o ar de traquina. Lembrei de novo o episódio onde para proteger uma colega de turma abriu a cabeça ao atacante entregando-se de seguida. Nunca fugia. Acho que também agora não fugiu, enfrentou a toxicodependência de frente e aí está. Eu não tive coragem de ir ter com ele, felicitá-lo por aquela vitória, mas vou-me lembrar sempre dele. Coragem José!