15.12.09

Natal SMS (*)

Normalmente a noite custava imenso a passar. O frio da época deixava apenas colocar de fora nariz e olhos que, na penumbra, procuravam algum sinal do amanhecer na persiana, indicando que estava na hora de acordar. Chegava a hora e saltávamos os quatro da cama para vestir e fazermo-nos à estrada com os pais. Estava na hora de ir para casa dos avós passar o Natal.
A viagem de três horas era uma aventura sem as actuais auto-estradas, mas guardo gratas recordações de paisagens do Douro, quando passávamos da Régua a Lamego – penosa subida essa que fazia o meu irmão passar de branco a azul e outra vez a branco em apenas treze quilómetros! – depois, Viseu, Mangualde e por fim, Gouveia. Ou melhor, Nespereira, uma aldeia do concelho de Gouveia. E não havia melhor aldeia para ver a Serra da Estrela em todo o seu esplendor. A casa dos meus avós era quase a última, no cimo da rua e da ampla varanda via toda a aldeia e aquele espectáculo do pôr-do-sol reflectido na brancura da serra. Hoje recordo tudo isso sem que na altura me tenha apercebido das memórias que me iriam marcar. Recordo, com saudades, o meu avó, homem grande e corpulento, de poucas falas, mas de uma ternura para com todos. Ficava sentado num dos cantos da casa que lhe permitia observar, com atenção, os netos nas suas tropelias e correrias por todo o lado. Sorria com a nossa alegria, vitalidade e curiosidade próprias de miúdos traquinas a espreitar coelheiras, galinheiros e pombal para saber das novidades por entre a bicharada. A minha avó, não aguentava de saudades e contava cada minuto até a nossa chegada, abraçando cada um de nós até ao sufoco, com o seu largo sorriso que manteve até ao fim da sua longa vida. Esperava sempre por nós para fritar as filhós, quentinhas, sabendo ela que eu só as comia assim. Entretanto, eu partia as nozes e avelãs na soleira da porta ainda hoje não sei porquê, mas era lá, e em mais nenhum sítio que o fazia.
Chegavam outros tios e primos e a alegria era a dobrar. Todos a correr pela casa, jardim e horta fora. O espaço ficava pequeno e a rua era campo de futebol e do jogo da cabra cega, vinham outros miúdos da aldeia e a festa era completa.
A minha madrinha, pior que os miúdos na ânsia de ver a nossa alegria com as prendas, estragava sempre a surpresa aos pais, entregando as prendas, normalmente uma para cada um, logo a seguir ao jantar, quando não era antes. Depois, de enorme convívio entre todos, ficávamos distribuídos ali, outros na casa de familiares. Depois era dia de visitar a aldeia quase toda (pensava eu na altura) tal era o número de familiares a visitar naquele dia, mas havia uma casa em que os miúdos imploravam para não ir. A casa da tia Olívia. Não que fosse má pessoa, nada disso, mas tinha um bigode que picava mais que arame farpado, e nós, quais vitimas, fazíamos fila para a cumprimentar debaixo dos olhares dos pais, não fosse algum fazer a desfeita de não receber um beijo farfalhudo da tia Olívia. Depois, o regresso. Ainda não tínhamos deixado de ver a avó a acenar e já estávamos com saudades daqueles ares e liberdade, dos cheiros e da grande fogueira que se acendia desde o Natal até ao Ano Novo.
Agora a família é mais reduzida. Com a morte dos avós a família transforma-se. Cada um dos tios passam a ser avós e o local de celebração passa a ser a sua própria casa, mas com isto veio também um Natal que começa no inicio de Novembro, com catálogos na caixa do correio, em todos os jornais, como suplementos, como oferta disto e daquilo, meu Deus, tanto papel! Depois começa o rebuliço das prendas, dos embrulhos, das compras. Quando por fim chega o Natal já estamos cansados e a pensar onde vamos passar o Ano Novo. Não existe a magia do Natal de outros tempos, tudo se tornou comercial, banal. A antiga forma de desejar feliz Natal com uma visita ou um postal, foi substituída por uma simples e preconcebida mensagem de telemóvel, cheia de floreados, enviada para pessoas da nossa lista cuja última vez que falamos com elas foi… com uma mensagem no Natal anterior.
Este ano, não haverá Natal SMS… pelo menos para mim.
(*) Expresso de Felgueiras, 11 de Dezembro 2009

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