11.1.25

Foi num dia

Era o Beirão, sim, agora tenho a certeza, era o José Beirão o tipo que se punha à varanda do prédio em frente, terceiro andar, dois abaixo de mim, nove em ponto e tocava o seu oboé para os vizinhos daquela pequena praceta. De inicio com alguma timidez, depois com toda a sua caixa torácica e o amplificador. Sim, porque músico que se preze tem que ter um amplificador, não vá alguém perder uma nota. 
Depois foi a Maria Violeta que se juntou numa outra varanda, para a qual eu não tinha vista, com a sua voz e viola. Combinavam as músicas aos gritos na varanda mas depois, dizem ainda as vizinhas, o Beirão deixava a ordem do concerto daquela noite na caixa do correio da Maria Violeta. E era giro, estarmos confinados ao nosso espaço habitacional, e verificarmos que todos precisamos dos outros, nem que seja para nos darem música. Dali, da minha varanda, podia ver o Beirão estendido no sofá a falar ao telemóvel, imaginando-o já a falar com a Maria a quem teria passado o seu número na lista do repertório da noite. Naquela altura falávamos ao telemóvel, todos ficamos com tempo para ligar aos amigos próximos e mesmo aqueles cujo número estava gravado no telemóvel não sabemos bem como e à tia Olívia, uma tia-avó, que nos dava beijos enquanto garotos e picava com o seu bigode. 
E assim foi durante umas semanas. Mas as coisas pioraram, e sem sequer conseguirem ir à rua, os velhotes dos prédios estavam com problemas em fazer as suas compras. Beirão e Violeta formaram uma sociedade irregular, e era vê-los a despachar as compras e a entregar. Houve até um dia, em que a velhota da varanda ao lado do Beirão fez anos e ali todos cantamos os parabéns, antes do concerto. 
Naquele dia acreditei, confesso. Acreditei mesmo que tudo iria correr bem, que o facto do tempo ter abrandado nos fez ver coisas que a alta velocidade da sociedade até então não nos deixava. Entretanto passou. Voltamos às rotinas, aos empregos, a levar a canalha à escola. Agora quase não vejo o Beirão e, pior, não oiço a sua música, nunca mais vi a Violeta nem o seu sorriso a acompanhar os velhotes e acho que a vizinha do Beirão teve que ir para um lar de idosos porque os filhos não tinham como cuidar dela. Se tenho a varanda aberta, por vezes oiço discussões entre os casais. Estão cansados, percebo. 
Deixei de ver jovens a ajudar os velhotes com as compras e passei a ver jovens a acotovelarem os mesmos na ânsia de se chegarem aos primeiros lugares para passar na passadeira. Não, não ficou tudo melhor. Estamos mais egoístas, mais intolerantes, mais anti-sociais. 
Estamos sem valores.
Sérgio Martins (2024)


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